Distinção entre infração ética e ilícito penal no exercício da medicina sem RQE

Na última semana, a comunidade médica e jurídica ficou em alerta ao saber da prisão de um médico residente em anestesiologia, em Cuiabá. O delegado deteve o profissional durante a realização de uma consulta pré‑anestésica, alegando suposto exercício ilegal da medicina. O médico, devidamente formado e inscrito no Conselho Regional de Medicina de Mato Grosso, foi liberado após ser ouvido na delegacia. Em seguida, o conselho denunciou o delegado à Corregedoria da Polícia Civil, apontando suposto abuso de autoridade.



O episódio levanta questões relevantes sobre a autonomia técnica de médicos residentes em unidades de saúde. Muitas vezes, a confusão entre infração ética disciplinar e ilícito penal gera inquéritos policiais desprovidos de justa causa e casos de abuso de autoridade. A falta de compreensão sobre a natureza jurídica da residência médica e a distinção entre o Registro de Qualificação de Especialista (RQE) e a habilitação para a prática da medicina em determinada especialidade contribuem para esse cenário.



Para compreender a situação, é necessário analisar a legislação aplicável. O artigo 17 da Lei nº 3.268/1957 estabelece que os médicos só podem exercer a medicina após o registro de seus títulos no Ministério da Educação e a inscrição no Conselho Regional de Medicina. A Resolução CFM nº 1.627/2001 define o ato médico como qualquer procedimento técnico‑profissional praticado por um médico legalmente habilitado. Essa resolução ressalta que tais atos são privativos de profissionais formados em instituições reconhecidas e registrados no CRM.



O Conselho Federal de Medicina, por meio do Parecer nº 21/10, afirmou que os CRMs não exigem que um médico seja especialista para trabalhar em qualquer ramo da medicina. Um médico generalista ou com pós‑graduação lato sensu pode exercer atos médicos em qualquer área, desde que se sinta capacitado e assuma responsabilidade civil e ética. Assim, a premissa policial de que um médico sem título de especialista estaria impedido de realizar procedimentos complexos carece de fundamento legal.



Existem, entretanto, vedações específicas para médicos não especialistas, como a impossibilidade de assumir a direção técnica de serviços especializados, conforme previsto na Resolução CFM 2007/2013. Além disso, o responsável técnico de unidades de terapia intensiva deve ser especialista na respectiva área. Esses requisitos não se confundem com o direito de exercer a medicina em geral.



O Registro de Qualificação de Especialista, ou RQE, serve apenas para fins de publicidade. Um profissional que conclui uma pós‑graduação ou possui experiência em determinada área pode atuar nessa especialidade sem possuir o RQE. O que é vedado é anunciar-se publicamente como “especialista” sem ter o registro. A infração ética prevista no Código de Ética Médica pode levar a sanções disciplinares, mas não constitui crime.



Em relação aos médicos residentes, a Lei nº 6.932/1981 define a residência médica como modalidade de pós‑graduação, caracterizada por treinamento em serviço. O residente é, antes de tudo, um médico graduado com CRM ativo. A supervisão exigida pela lei não retira a autonomia do ato médico nem obriga a presença constante do supervisor. Portanto, a prática de um residente não pode ser considerada exercício ilegal.



O crime de exercício ilegal da medicina, previsto no artigo 282 do Código Penal, exige a ausência de autorização legal ou a extrapolação dos limites dessa autorização. Um médico inscrito no CRM, mesmo sem RQE ou em fase de residência, não pode ser sujeito ativo desse crime. Caso haja falha técnica que cause dano, trata‑se de imperícia, com responsabilidade civil e, em casos extremos, criminal por lesão corporal culposa ou homicídio, mas nunca de exercício ilegal.



Assim, a intervenção policial no ato médico, questionando a habilitação de residentes ou de médicos sem RQE, pode configurar abuso de autoridade, previsto no artigo 9º da Lei nº 13.869/2019. Os Conselhos de Medicina devem fiscalizar a publicidade irregular e aplicar sanções disciplinares. O Judiciário e os órgãos de persecução penal, por sua vez, devem analisar eventual imperícia e perseguir quem exerce a medicina sem autorização, mas não quem exerce dentro da sua habilitação legal.



Em resumo, o episódio em Cuiabá demonstra a necessidade de distinguir claramente entre a competência dos conselhos de medicina e a esfera penal. A prática de um médico inscrito no CRM, mesmo em fase de residência ou sem RQE, não constitui crime de exercício ilegal. A atuação policial, ao questionar essa prática, pode estar ultrapassando os limites legais e configurando abuso de autoridade.



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Distinção entre infração ética e ilícito penal no exercício da medicina sem RQE
Rannyelly Alencar Paiva 28 de novembro de 2025
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