O marco legal da execução fiscal no Brasil está pautado na Lei nº 6.830/1980, que estabelece, em seu artigo 8º, que o executado deve ser citado em cinco dias para pagar ou garantir a dívida. Esse mecanismo não admite flexibilização arbitrária, pois a citação é o ponto de partida para o devido processo legal e garante ao contribuinte o direito de defesa e a possibilidade de escolher a forma de quitação que melhor preserve sua liquidez, seja por garantia, parcelamento ou pagamento espontâneo.
O princípio da menor onerosidade, previsto no ordenamento jurídico, confere ao contribuinte a prerrogativa de escolher o meio que menos comprometa sua situação patrimonial. Quando o bloqueio patrimonial ocorre antes da citação, o processo se torna uma surpresa que viola o núcleo essencial do devido processo legal, conforme o artigo 5º, LIV, da Constituição Federal.
No estado do Rio de Janeiro, a execução fiscal passou por mudanças significativas com a criação dos Núcleos de Justiça 4.0, que passaram a emitir ordens de bloqueio em autos digitais, mesmo quando o magistrado não detém competência para a execução. A Resolução nº 385/2021 do Conselho Nacional de Justiça formalizou o modelo de “Juízo 100% Digital”, eliminando a presença física das partes. Decisões desses núcleos têm interpretado que o despacho inicial autoriza simultaneamente a citação e a penhora, mesmo que o aviso de recebimento postal retorne negativo.
Embora não haja decisão explícita de bloqueio após a ordem padrão de “cite-se”, o Núcleo de Justiça 4.0 pode determinar o bloqueio de contas bancárias em razão da ausência de citação válida. Precedentes das Câmaras de Direito Público do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro confirmam essa prática. Entretanto, a decretação de arresto prévio exige a demonstração de que o executado não possui domicílio ou se oculta, nos termos do artigo 7º, III, da LEF. Essa condição demanda elementos fáticos robustos e não pode ser baseada apenas na anotação de “ausente” no aviso de recebimento.
Conforme ensina Rodrigo Dalla Pria, a constrição eletrônica de ativos pressupõe a existência de contraditoriedade que permita ao devedor saldar a dívida de forma espontânea, o que implica que o executado tenha sido citado. Essa regra só pode ser exceção quando o credor demonstrar urgência, conforme o art. 300 do Código de Processo Civil, ou quando houver domicílio incerto ou ocultação dolosa, autorizando o arresto cautelar.
O fenômeno estrutural se manifesta na citação por correio, que não possui fé pública nem pode qualificar o comportamento subjetivo do destinatário. O simples retorno negativo de carta registrada não comprova ocultação, mas sua generalização transforma ausência em presunção de fraude, esvaziando o caráter excepcional das medidas de arresto e comprometendo o regime jurídico da LEF. Mauro Luís Rocha Lopes alerta que a efetivação de citação ficta antes de esgotados todos os meios possíveis à localização do devedor afronta o devido processo legal.
Precedentes do Superior Tribunal de Justiça reforçam que o bloqueio de valores via BacenJud, antes da citação, requer a demonstração prévia dos requisitos autorizadores da medida. A ausência desses pressupostos impede o deferimento, conforme a Súmula 7/STJ. Da mesma forma, o bloqueio de ativos antes da citação exige a demonstração de fumus boni iuris e periculum in mora, mantendo a natureza cautelar da medida.
Assim, a penhora prévia à citação, sem fundamentação concreta, viola tanto a LEF quanto a jurisprudência do STJ, gerando insegurança jurídica. O modelo de execução fiscal digital no Rio de Janeiro, ao combinar automatização, fragmentação de competência e decisões de bloqueio pré-citatório, cria precedentes que corroem garantias constitucionais. A tecnologia, ao priorizar a rapidez, pode se tornar instrumento de supressão de direitos, privilegiando a lógica da eficiência em detrimento do devido processo legal.
Para o contribuinte, a realidade exige uma atuação processual estratégica desde o primeiro ato, com a perspectiva de que o litígio possa alcançar tribunais superiores e anular a decisão de penhora de conta bancária antes de ocorrência da citação válida. A execução fiscal, enquanto mecanismo de cobrança de créditos tributários, deve observar rigorosamente os limites constitucionais que asseguram ao contribuinte o direito de defesa antes da imposição de restrições patrimoniais capazes de comprometer a continuidade de sua atividade econômica.
Referências
[1] TJ-RJ – AGRAVO DE INSTRUMENTO: 00824696420248190000, relator: des. PEDRO SARAIVA DE ANDRADE LEMOS, data de julgamento: 10/10/2024, 2ª CAMARA DE DIREITO PUBLICO.
[2] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. São Paulo: Noeses, 2020, p. 569/570.
[3] LOPES, Mauro Luís Rocha. Processo Judicial Tributário: Execução Fiscal e Ações Tributárias. 9ª ed., Impetus, 2014, p. 60.
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 2.264.953 – SP (2022/0389305-1). Relator: ministro Mauro Campbell Marques. Julgado em 03 abr. 2023.
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.664.465 – PE (2017/0071201-0). Relator: ministro Herman Benjamin. Julgado em 02 ago. 2022.
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